terça-feira, 2 de julho de 2019

Ação interestadual contra o crime

A inexistência de um banco nacional de impressões digitais e o não cruzamento de dados entre as bases estaduais é um dos principais problemas de segurança pública do Brasil. Essa deficiência sistêmica tem consequências gravíssimas. Uma delas é a dificuldade na identificação de pessoas que estiveram em locais de crimes violentos, como homicídios, latrocínios, roubos e estupros.  Eis que as digitais coletadas são cruzadas exclusivamente com a base estadual do local do delito, diminuindo bastante a chance de resultados positivos. 

Outra consequência extremamente nociva para a sociedade, foco deste artigo, é a possibilidade de criminosos procurados em determinado estado da Federação conseguirem documentos oficiais em outros estados, dificultando bastante o trabalho da polícia  e permitindo a impunidade desses delinquentes.

A tarefa de conseguir um novo documento de identificação oficial não é difícil para o criminoso; basta que o delinquente escolha um estado diferente daquele onde é procurado. Então, munido de uma certidão de nascimento falsa, facilmente conseguida no mercado negro, o criminoso procura o Detran  ou o instituto de identificação civil e consegue um documento oficial baseado em dados falsos.

Como não há, ainda hoje, o cruzamento de digitais entre estados, o estado emissor do novo documento não tem meios de conhecer outros documentos de identificação emitidos para aquela pessoa em outras regiões do país, tampouco se há mandado de prisão ou um histórico criminal em relação àquele indivíduo.

Esse novo documento oficial vincula as digitais do criminoso aos dados falsos informados e, dessa forma, caso ele seja abordado pela polícia ou por qualquer servidor público, não terá maiores problemas. Se as digitais forem confrontadas com a base estadual que emitiu o novo documento,  haverá uma “confirmação” de que se trata de documento autêntico e, consequentemente, que aquela pessoa não é procurada.

É uma verdadeira “vida nova” de impunidade para o criminoso procurado, deixando pra trás todo um passado de crimes. O único risco para ele é o conhecimento de sua fisionomia pela polícia, o que é algo extremamente difícil e rudimentar, mas ainda necessário.

Recentemente a Polícia Civil do Rio de Janeiro capturou o paraense Thiago  Cardoso Martins, vulgo Thiaguinho, apontado como autor de homicídios e um dos criminosos mais procurados no Pará.

Ele portava uma CNH emitida em nome de Alex de Nazaré Martins. Nas pesquisas iniciais,  foi verificado que o documento era oficial e que não havia mandado de prisão para ele. O cruzamento das digitais com o sistema do Detran  carioca confirmou que aquele indivíduo abordado seria Alex de Nazaré Martins, portador de documentos aparentemente legítimos emitidos pelo Detran do Rio de Janeiro.

A prisão somente foi possível porque os policiais civis do Rio dispunham de informações da Polícia Civil do Pará e sabiam que o indivíduo abordado era Thiago Cardoso  Martins, criminoso de altíssima periculosidade.

Outro caso emblemático foi a prisão de  Elton Leonel Rumich da Silva, o Galã, um dos líderes do PCC, enquanto fazia uma tatuagem em Ipanema, no Rio de Janeiro, em 2018.

A prisão somente foi possível porque, mais uma vez, os policiais civis conheciam bem o rosto do criminoso e não foram enganados pelo documento oficial que ele apresentou: em nome de José Carlos  da  Silva  Júnior.

Galã possuía uma CNH aparentemente legítima, emitida pelo Detran do Paraná, e não teria problemas em fiscalizações policiais de rotina. Qualquer policial que consultasse o documento nos sistemas disponíveis verificaria a foto do indivíduo abordado e confirmaria todas as informações existentes no documento apresentado, inclusive as impressões digitais. 

Para o sistema do Detran,  ele era José  Carlos  da  Silva  Júnior, indivíduo sem histórico criminal. Somente se buscado pelas digitais no estado de origem (São Paulo) ou pelo seu verdadeiro nome seria possível confirmar que se tratava de Galã, o criminoso mais procurado do Paraguai.

Os casos concretos acima, e inúmeros outros que poderíamos narrar, bem-sucedidos exclusivamente pelo empenho pessoal de valorosos policiais, demonstram a importância da criação de um banco de dados nacional de impressões digitais ou da obrigatoriedade do cruzamento dos bancos de dados de todos os estados brasileiros, incluindo todas as bases civis, militares e criminais, para a emissão de um documento de identificação. É uma medida essencial para o combate à impunidade.

Trata-se de um problema muito grave, desconhecido por quase a totalidade dos brasileiros, mas muito bem estudado e utilizado pelos criminosos. A atenção para esse assunto é urgente e fundamental para a construção de um país mais seguro.

Fabricio Oliveira é Delegado de Polícia


https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-acao-interestadual-contra-crime-23777123

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